domingo, fevereiro 17, 2019

Pois então, é médico e é gente?


Para começar esse texto eu quero levantar uma reflexão acerca de um ponto que me causa certo constrangimento interior em minha (futura) profissão. Quando digo que vou passar 30 horas corridas no hospital, muitas pessoas me dizem “é isso mesmo, tem que ir treinando”. “Treinando para que, mal lhe pergunte?”, essa é a minha vontade de responder para essa pessoa.
Você professor já ficou 30 horas com alunos? Você advogado, já pensou em passar 30 horas em um julgamento sem aquele tão famoso “recesso”? Você engenheiro já ficou calculando por 30 horas um prédio que vai construir? Você jogador, já jogou uma partida de 30 horas? Você político, por acaso já levou suas malas pro congresso e ficou lá confinado por 30 horas? 
Eu amo os pacientes, amo o cuidado, ver o sorriso de um paciente e o olhar agradecido deles são reconfortantes, ver a melhora clínica de um paciente que chegou grave ao hospital e ganha alta andando e muito bem. Mas essa angústia permeia a todos os que carregam a bandeira de medicina humanizada com responsabilidade e atenção integral ao paciente. As situações descritas, na minha opinião, tornam-se incompatíveis com a implantação de um atendimento digno ao paciente pela sobrecarga dos médicos em formação.
Médico é gente, tem necessidades fisiológicas que incluem direito ao sono e a alimentação. e a privação dessas funções causam mal estar, fadiga, Síndrome Burnout e um certo mal estar (para todos: equipe multiprofissional e pacientes). 
Eu pelo menos digo que não exerço bem minhas funções cognitivas quando estou com sono e com fome. A motivação dessa texto se deu quando ontem em 6 horas de atividade eu tinha ingerido 150 mL de água e comido 2 yakults e 3 bolachas. Parei para pensar que isso não era normal. Eu estava em pé há 6 horas e fui almoçar passando mal de dor no estômago após cometer um erro de trocar o nome de pacientes na prescrição (que, ainda bem, vi a tempo) e levar uma bronca por isso. Nesse dia,meu celular contou cerca de 10004 passos e mais ou menos 6,2 km andados (mas eu nem sai do hospital!). 
O problema é que médico não pode dormir, nem comer e mesmo assim, após 12 horas, 24 horas, 30 horas, tem que estar bem, fingir que não está exausto e seguir em frente rumo ao próximo paciente. A única coisa que eu gostaria que dizer é que ali atrás de um jaleco branco, de um capote meio amarrotado existe um ser humano, sujeito a cometer erros,como qualquer outro profissional, mas são extremamente culpabilizados e o resultado de suas falhas pode resultar em impactos de perdas materiais, pessoais, profissionais e de vidas. 
O erro médico acontece, mas não é fruto apenas de uma simples imperícia, imprudência ou negligência. Por trás dessa história toda existe uma série de circunstâncias que mal importam para as pessoas. Por isso escrevo esse texto. Precisamos urgentemente rever os currículos e a prática médica. Não está em jogo a formação de um robô médico e sim de um profissional que deve ter todas as condições propícias para aliar inteligência emocional, empatia e SIM habilidades clínicas.
As pessoas podem até dizer que o médico escolhe dar plantões e dar X plantões, mas eu te digo, se isso é uma escolha, porque as pessoas dizem “você está treinando né?”. Não se treina para o que você não vai praticar na vida. O que eu alerto é que a visão social do médico como um super herói, um ser que não se cansa, que não bebe água, que fica em pé sem se cansar, que se priva do sono para atender ou estudar deve ser repensada. Isso está errado! Não se ajuda ninguém se as suas condições não forem minimamente favoráveis. Se você não tem tempo de beber água, se você apenas se alimentará quando tiver tempo e SE tiver tempo. Se a sua saúde mental estiver mal você estará com o rendimento de trabalho diminuído e sobre essa questão ninguém conversa. Conversa-se sobre como um médico errou tal diagnóstico, sobre telemedicina, sobre o governo ter reformulado o programa 'Mais Médicos", sobre o salário alto dos médicos, sobre como você deve fazer dermatologia e cirurgia plástica para treinar em muitos cobaias voluntários. 
Sobre você ninguém quer saber. Sobre o ser humano que há embaixo do jaleco,sobre a saúde mental que está prejudicada, sobre a sonolência excessiva, o estresse e o descontrole emocional ninguém fala. O fato de você se sentir impotente naquele serviço de saúde,o estresse com a piora súbita de do seu paciente, a forma como você lida com perdas, a reação dos familiares com você (ora compreendendo o teu sofrimento como médico, ora te agredindo verbalmente pelo resultado do tratamento não ser o esperado). Ninguém para para te perguntar se você está bem, em meio a um início de ano turbulento, para quem tem empatia e se importa com todas as tragédias ao seu redor.
Para além disso, quando você adentra a um hospital você tem que lidar diretamente com uma série de conflitos entre Sistema de Saúde e usuário/acompanhante. Muitas vezes, você não tem culpa da superlotação, da falta de insumos, do espaço físico precário e até se esforça para fazer o seu melhor, porém é culpabilizado por uma situação estrutural.
 E o cansaço te toma até realmente você começar a se tornar o que todo mundo diz que você está treinando para ser: uma máquina. O sistema, as pessoas ao seu redor, o hospital te treinam para que você vire uma máquina de diagnóstico e tratamento, até você não se reconhecer mais dentro do que te motivou a entrar naquele mundo, até você ser mal educado com um acompanhante que externa seu sofrimento em forma de exigência e rispidez com a equipe médica (você sabe disso), no entanto não está com tanta paciência para convencê-lo a se tranquilizar. Você olha os pacientes como se sua cabeça tivesse um vazio imenso e se sente limitado em suas ações. Você erra o nome do paciente ao fazer uma prescrição e isso é culpa sua. Mas afinal, eu não escolhi estar ali por 30 horas, estou, como interna, obrigada a isso ou não terei meu tão sonhado diploma.
Esses dias vi uma frase que diz que “O preço de qualquer coisa é a quantidade de vida que você troca por isso”. Eu digo que isso deveria ser a máxima da profissão médica. Mas se você ficar doente não pode pegar um atestado médico (irônico!), a não ser que algum colega te cubra em sua atividade. Você não tem tempo de ir ao médico cuidar das suas dores e comorbidades, da sua saúde mental, de fazer uma atividade física, de se cuidar sem abdicar de algo (sem abdicar da sua vida com a família ou até mesmo de estudar o que deveria para ter conhecimento). 
Querem que você trabalhe e estude muito e saiba tudo sobre determinado assunto, correndo o risco de ser humilhado publicamente por certos chefes caso não responda com excelência a pergunta feita na frente do paciente. Bom, isso para mim não é humanização! O médico deve primeiramente viver bem para praticar a medicina humanizada. Os currículos médicos devem ser revisados para garantir aos estudantes um minimamente as 4 coisas ajudam pacientes depressivos em sua recuperação (e que deveria na verdade ser estendido a todos): lazer, atividade física, vida social e fé (pois a esperança não pode ter fim, sem esperança não se há nada).
Isso foi apenas um desabafo de uma médica em formação que está cansada de ser vista como um robô e que espera que tudo melhore no futuro, quando pensarmos que a vida não tem que ser assim, no momento em que entendermos que isso foi uma condição imposta por um sistema que molda robôs para tocar o serviço de um hospital, independente da qualidade do atendimento. A reflexão é o primeiro passo para mudar a realidade dessa situação que contribui para a formação de profissionais apáticos e sem paixão pela sua profissão. Enquanto tratarmos as situações descritas com naturalidade todos nós assinamos embaixo a declaração de que desejamos ter um sistema de saúde sucateado guiado por um carro chefe de médicos-robôs. 


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